domingo, 31 de maio de 2020

Recado aos colegas garantistas. Ou: a necessidade de ir além da superfície em relação ao inquérito de ofício das Fake News

Esta é uma mensagem dirigida especialmente aos meus colegas GARANTISTAS.

Percebo que a maioria tem se posicionado no sentido de que o inquérito 4.781, instaurado de ofício pelo STF, é um procedimento ilegal/inconstitucional. Vejo que essa posição é, inclusive, sustentada por grandes expoentes do garantismo penal no Brasil, como Aury Lopes Jr. e Alexandre Moraes da Rosa, professores que muito admiro e que me servem de inspiração. Naturalmente, nobres juristas formam a opinião de boa parte dos jovens estudantes e operadores do Direito que por eles são influenciados, de sorte que, em alguns nichos, estabeleceu-se certo consenso - ou quase consenso - de que o inquérito é  mesmo eivado de vícios.

A propósito, uma coisa me chamou a atenção na formação dessa pretensa unanimidade. Parece-me que ela decorre de um fenômeno muito interessante: de um lado, os famosos garantistas de ocasião (pessoas que sempre sustentaram a linha punitivista, inclusive defendendo abusos flagrantes da Lava-Jato, mas que agora, magicamente, invocam as garantias constitucionais, por mera conveniência política). Na outra ponta, aqueles que consideram como garantismo a atitude de se opor a toda e qualquer decisão judicial que atenda à pretensão punitiva do Estado. Criticaram os desmandos da Lava-jato (com razão), e agora, aproveitando-se da inversão do espectro político dos investigados, querem projetar a imagem de "isentos", mostrando que suas posições jurídicas estão acima de orientações politico-partidária. Em suma, querem afirmar: "Está vendo? Sou tão preocupado com as garantias individuais que as defendo inclusive para aqueles que tanto a atacaram".

É a famosa ideia de "fazer média".

Resumo da ópera: ao convergirem os garantistas de ocasião e os garantistas "isentos", chegamos a uma aparente unanimidade no mundo jurídico. Unanimidade burra, entretanto. Explico.

Não sou adepto da ideia de que toda unanimidade é burra. Inclusive, acho que muitas coisas deveriam ser unanimidade e, lamentavelmente, não são. Mas considero, nesse caso, que o entendimento predominante está equivocado.

Existe uma diferença abissal entre o inquérito de ofício do STF e as chicanas criticadas os tepos de Lava-jato. Sei que muitos incautos dizem ser uma incoerência se considerar garantista e sustentar que esse inquérito é legal. Ou então dizem que essa posição jurídica, na verdade, disfarça um viés político-ideológico.

Não poderiam estar mais equivocadas. No meu caso em particular, admito que já tendi a me alinhar com o senso comum do universo jurídico, sendo seduzido pela aparência.

Não, não há como negar. À primeira vista, realmente, também me soou muito heterodoxo o inquérito. A impressão imediata, especialmente para quem preza pelas garantias processuais, é de que o inquérito parece violar um importante princípio processual, denominado sistema acusatório.

Mas repare: eu disse parece. Aparências enganam. Para se dar conta disso, basta se debruçar sobre o assunto e fugir dos memes de redes sociais e das frases prontas. Basta encarar a questão com profundidade, estudar e destrinchar o inquérito com cautela, navegando pelos complexos meandros jurídicos que o envolvem.

Uma vez que se faça isso, é de se ficar assombrado com o tanto de baboseira dita por aí sobre o inquérito. Ignorância ou pura desonestidade intelectual, como já é normal de se esperar dos garantistas de ocasião.

Aqui é preciso desmistificar uma concepção equivocada: ser garantista não necessariamente implica se opor sempre ao jus puniendi. Um garantista realmente isento deve apontar as violações da ordem legal, quando houver, bem como os excessos na pretensão punitiva do Estado. No entanto, também lhe cumpre esclarecer o cabimento legal das medidas e decisões judiciais. Dizer quando elas são corretas!

Se o Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, o Procurador Geral da República e nove ministros da Suprema Corte já se manifestaram pela regularidade formal do inquérito, o mínimo que nos cabe é questionar se essa unanimidade estabelecida no mundo jurídico é mesmo procedente.

Não, você não precisa se convencer pelo argumento de autoridade. Pode investigar os fundamentos. Aliás, é importante que o faça.

A controvérsia sobre o inquérito do Supremo é realmente muito rica e instigante. Aos que tiverem interesse nos argumentos que me persuadiram a acreditar que o inquérito é formalmente regular, deixo AQUI o link do parecer do ex-AGU, atual ministro da Justiça, André Mendonça, que julgo ter exaurido o tema com maestria naquela oportunidade.


É uma leitura extensa, mas vale a pena.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Crise dos combustíveis: a irresponsabilidade dos que creêm justo impor à força as próprias razões


Já atravessamos um período de extrema conturbação política. Mas não bastasse a instabilidade já instaurada, ainda somos surpreendidos pelos caminhoneiros.

Muito bem. Ontem ficou estipulado, mediante acordo, que seria dada uma trégua a essa greve. Para isso, algumas concessões foram feitas: Reduzir-se-á em 10% o preço do diesel durante 30 dias, bem como será zerado o Cide sobre o combustível etc. Todas as reivindicações foram atendidas, inclusive uma que prevê a desoneração das folhas de pagamento para o setor de transporte. Opa! Espera aí! Não seria essa uma medida de interesse dos empregadores? Como assim? Estariam mesmo os caminhoneiros reivindicando uma pauta em prol dos seus empregadores, ou há mais que os caminhoneiros por trás dessa bagunça toda? Importante questionar.

No fim das contas, o acordo que deveria solucionar o impasse, aparentemente não serviu para muito. Acordamos hoje de manhã com os noticiários anunciando uma desordem ainda mais aguda. Desabastecimento em supermercados, combustíveis praticamente inexistentes em todos os postos, transporte urbano em vias de paralisação, aeroportos com vôos cancelados e assim por diante. Pior ainda: insumos hospitalares começaram a faltar e muitas pessoas doentes, por conseguinte, tiveram suas vidas expostas a risco.

Esses e vários outros serviços essenciais beirando o colapso.

INDAGO: É JUSTO UM GRUPO FAZER VALER SUA VONTADE EM DETRIMENTO DE TODA A SOCIEDADE?

Mesmo que lhes assista razão (não vou nem entrar nesse mérito), o ditado maquiavélico não poderia ser mais atual: os fins não justificam os meios. Exercício arbitrário das próprias razões, é como se chama isso. Um completo absurdo admitir que se submeta a sociedade à escassez e à privação a pretexto de negociar interesses econômicos. Essa chantagem não é contra os engravatados de Brasília, não. Ela é contra mim e você.
E diante desse imenso pandemônio, o que acontece? Diversos setores da sociedade manifestam apoio à greve, numa verdadeira atitude masoquista. O Congresso adere  à onda e aprova de forma completamente irresponsável uma redução de preço. Se isso implica 3 bilhões, 9  bilhões ou 15 bilhões de prejuízo para os cofres públicos... que diferença faz, não é mesmo? Responsabilidade fiscal que se dane. Afinal, se a ânsia ignorante e imediatista das pessoas pede, então que assim seja atendida. Mesmo porque os deputados precisam se reeleger, então quanto mais populismo melhor.

Acontece que, nessa história toda, o povo se esquece que o preço do combustível cair agora não é vantagem para ninguém. A não ser pros oportunistas de plantão, é claro.

A conta vai vir do mesmo jeito, senhor contribuinte. Não adianta: a matemática não admite afronta. Seja do jeito que for, quem paga é você. Tirou daqui, vai ter que repor ali. E se não repor, lá vamos nós entrar em recessão de novo... Como se o rombo do Tesouro já não fosse grande o suficiente, né?

A gente tem é que parar de achismos e coelhos na cartola. Temos é que cumprir a Constituição e as leis, pronto e acabou. Se esse transtorno se prolongar, vários direitos fundamentais serão violados de maneira grave. E se dependermos do comando do movimento, que se lasquem os direitos. Se não se sensibilizaram até agora, isso não deve mudar por livre e espontânea vontade.

Nessas horas que entram os tanques na história. Diferentemente do que muitos acreditam hoje em dia, os tanques não servem para instaurar um governo autoritário. Eles servem justamente para assegurar a preservação dos direitos no âmbito da democracia.

Nós temos um ordenamento jurídico a prever medidas que devem ser tomadas em situações como essa. Ocorre que a demonização dos políticos hoje é tão grande que poucos acreditam que as leis e os recursos institucionais são a solução. Acham que da porrada e da bagunça sairão soluções para os nossos problemas. Acham que sobrepor o seu próprio conceito de justiça sobre o texto da lei é o caminho da prosperidade. Isso, claro, até que as pessoas se tornem vítimas das suas próprias concepções de mundo. Quando a mira lhes é apontada - e em algum momento sempre é - aí tudo muda: passam a rogar para si todos os direitos que são inerentes ao estado constitucional.
E eu? Eu continuarei a fazer a minha parte para que a civilização vença a barbárie. Eu continuarei a defender os princípios da Constituição.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Um breve apelo acerca da "cultura do estupro". Ou: a confusão moral do discurso feminista.

Declarar repúdio a "cultura do estupro" não adianta nada. Quando você traça um denominador comum entre cantada de pedreiro e estupro coletivo, afirmando que é tudo expressão de uma mesma "cultura de estupro", na prática, você está submetendo estas duas condutas ao mesmo plano moral. Sim, eu concordo que o assédio é uma coisa imbecil. Mas não dá pra colocar no mesmo balaio de uma prática tão brutalmente perversa como a que aconteceu no Rio de Janeiro. A diferença é tão grande que não cabe sequer estabelecer um nexo causal.
A bem da verdade, o discurso da "cultura do estupro" não faz nada se não ajudar a obscurecer e confundir a percepção moral dos fatos. Um conselho: Se você se revolta com episódios vis e bárbaros como este - assim como, para sua surpresa, praticamente TODO MUNDO NA NOSSA CULTURA -, evite banalizá-los. Considere, ao menos, a hipótese de punições mais severas para crimes desta estirpe; ou, então, de proporcionar condições para que as mulheres se defendam em situações assim. Desta maneira, talvez, a gente consiga encontrar medidas que efetivamente prestem-se a diminuir o problema, em vez de simplesmente propagar masturbação ideológica na internet.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Cotas raciais e compensação histórica

As cotas raciais não têm fundamento de validade que a sustentem num plano razoável. Uma abordagem muito comum apresentada em seu favor baseia-se em uma percepção da história com forte apelo emocional, essencialmente descuidada do bom senso e da precisão.
Tratemos, então, da afirmação de que as cotas surgem para quitar uma dívida histórica com a população negra do Brasil, consequente da escravidão. Essa tese é irritantemente despropositada, por uma série de motivos. A começar que não há cabimento algum na ideia de converter os "brancos" de hoje em representantes imediatos dos senhores de escravos de duzentos, trezentos anos atrás. Menor cabimento ainda há em propor que estes representantes, eleitos arbitrariamente, paguem uma pretensa dívida criada por seus ancestrais remotos. Sejamos razoáveis. Se houvesse algum sentido na ideia de que a pendência moral de um indivíduo se transmite para seus descendentes, então a morte de Isabella Nardoni talvez não tenha sido tão injusta. Afinal, o pai dela era um assassino; e ascendente direto da menina. 
Diante de um argumento falacioso como o da compensação histórica, faz-se necessário evocar um princípio fundante do Direito Penal, perfeitamente aplicável a esse caso: a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado. Se os responsáveis por consumar a escravidão no Brasil não foram devidamente condenados pelo que fizeram, paciência. Não se justifica, pela omissão do passado, deslocar esse ônus moral através dos séculos e imputá-lo a um grupo inocente de pessoas que, hoje, concorrem a vagas em universidades e postos de trabalho. 
Brancos pobres são os mais vitimados por essa política. Não bastasse faltar-lhes oportunidades na vida, ainda são responsabilizados pelos erros de ancestrais longínquos. Podem estar bem longe de usufruir dos privilégios que uma herança abastada lhes garantiria, mas ainda assim carregam consigo o título de representantes da riqueza colonial. Podem nunca ter discriminado alguém por motivo de raça em suas vidas, mas ainda assim são classificados como representantes da opressão escravista. Em verdade, a compensação histórica, tão aclamada pelos defensores da "justiça social",  nos leva a cometer graves injustiças. Ela cria rótulos absolutamente injustos para os brancos pobres. E, a pretexto desses rótulos, leva-nos a tomar a medida ainda mais injusta de fazer com que essas pessoas sejam castigadas por uma culpa que não possuem. 
O raciocínio é disparatado. Suponha que Joãozinho é um aluno branco de escola pública. Ele tem um amigo negro na mesma escola, tendo sido dois sujeitos a mesma educação sucateada. Terminando o Ensino Médio, Joãozinho e seu amigo disputam uma vaga no mesmo curso da mesma universidade pública de ensino. Mas a nota que Joãozinho precisa tirar no vestibular, para passar no curso desejado, é maior do que aquela que seu amigo precisa tirar. Esse tratamento diferenciado, que muitos condenariam como uma prática discriminatória, é totalmente admissível na ótica da compensação histórica, pela simples razão que o ta-ta-ta-ta-ta-taravô do Joãozinho era um escravizador filho da puta, enquanto o ta-ta-ta-ta-ta-taravô do amigo dele era um escravo sofredor. Como pode alguém achar isso minimamente razoável? Qual o sentido em um indivíduo determinado pagar por uma dívida moral difusa na sociedade, mesmo ele não tendo nada a ver com ela?
Mas a transmissão da culpa por descendência não é só uma ideia absurda. No caso de se atribuir a herança da escravidão a um grupo de pessoas com determinada cor de pele, também se pressupõe uma ignorância genética. Isso porque a compensação histórica ignora, para efeitos gerais, a possibilidade de um "branco", malgrado apresente tal perfil fenotípico, ter um ancestral negro em sua linhagem; quiçá um escravo. Não só é possível que isso aconteça, como é muito provável, especialmente quando consideramos a miscigenação profunda que compõe o povo brasileiro. 
A recíproca também fica de fora da análise dos justiceiros sociais. Eles se esquecem de que um negro também tem, muito provavelmente, ancestrais brancos em sua linhagem. Sabe-se lá se um deles não era senhor de escravo. Ademais, não se pode excluir a possibilidade de um dos ancestrais negros ter sido, ele próprio, um escravizador. Afinal, a escravidão não foi prática exclusiva de colonos europeus. Ao longo do século XVIII, era muito comum negros libertos também ostentarem escravos. Zumbi dos Palmares, por exemplo, tinha uma legião deles. O líder costumava ordenar a captura de escravos das fazendas vizinhas, para que servissem compulsoriamente no Quilombo. 
Aliás, este é um outro equívoco elementar da tese de compensação histórica: ela parte do pressuposto de que a história da escravidão no Brasil foi uma história de raças, como se os brancos europeus tivessem escravizado negros africanos por os considerarem inferiores. Não obstante popular, esta ideia é FALSA. A raça dos africanos nunca serviu de justificativa para a escravidão até o advento do iluminismo. A manutenção de pessoas como propriedade simplesmente era aceita por todos, e não se assentava sobre justificativa alguma. Não precisava disso. Na mentalidade da época, simplesmente não existia a ideia de que os seres humanos são iguais. Não se compreendia a liberdade como um direito universal. A escravidão existia, porque as pessoas eram escravizadas. Simples assim.
Essa mentalidade torpe, com efeito, só veio a mudar quando o pensamento iluminista se popularizou. Em meados do século XVIII, o fundamento moral da escravidão brasileira começou a ser colocado em xeque, em vista da mais nova e revolucionária ideia de que todos tinham igual direito a liberdade. Foi então que se evocou o racismo, para contrapor o ideal iluminista e justificar atos de dominação que pareciam indefensáveis. 
Mas a verdade é que o iluminismo incidiu uma importante luz sobre a mentalidade humana. Até então, os escravizadores não tinham consciência de que a escravidão, aquele costume tão difundido na sociedade da época, configurava uma atrocidade ética. Talvez, eu ouso dizer, a ignorância acerca dessa atrocidade deva eximir os "brancos opressores" da culpa que lhes foi imputada pela escravidão. Talvez nunca tenha existido dívida alguma. Afinal, é com base exatamente no mesmo tipo de alegação de ignorância que os justiceiros sociais saem fervorosamente em defesa dos indígenas, quando são confrontados com os infanticídios perversos cometidos pelos ianomâmis. Por que, a fim de que se demonstrem coerentes, essas nobre almas também não saem em defesa dos senhores de escravo? 

Em texto futuro tratarei das consequências negativas das cotas. Avaliarei a classificação necessariamente arbitrária implicada na identificação estatal dos beneficiários da política de cotas. Ponderarei acerca do problema que os pardos representam para a implantação das cotas, visto que sua condição indefinida e intermediária gera um grande desafio para a divisão estanque da sociedade, em função da cor de pele. Falarei das consequências nefastas de se institucionalizar e tornar explícita, com força de lei, uma política que discrimina pessoas por critério racial e perigosamente divide brancos e negros em seus direitos.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Definições, religião e casamento gay

 Conservadores geralmente referem-se a família como um núcleo sagrado e soberana. As rédeas profanas do poder social estabelecido, acreditam, não deve ousar intrometer-se nas questões familiares. A família, afinal, é a uma instituição fundamental da sociedade, a qual o próprio Estado deve sua existência e legitimidade e sobre o qual o Estado não tem direito algum de legislar. Mas será mesmo que essa visão se sustenta? Será mesmo que o Estado não tem autoridade sobre aquilo que é anterior a ele?

 Se pararmos para pensar, as liberdades individuais constituem o elemento mais primordial de toda vida em sociedade. Nem por isso os indivíduos deixam de abrir mão parcialmente desse direito natural ao delegarem-no para o Estado, naquilo que conhecemos como contrato social. Se essa abdicação ocorre no âmbito individual - dando respaldo, por exemplo, à aplicação de penas a quem comete crime contra a ordem pública- por que a dificuldade em compreendê-la também no âmbito familiar? Da mesma forma que o papel do Estado inclui o direito de violar a liberdade individual de um criminoso e puni-lo com o cárcere, em prol do bem comum, ele também inclui o direito de redefinir o conceito tradicional de família se este revelar-se em descompasso com os interesses civis. 
Com efeito, a definição convencional está essencialmente ligada ao universo religioso e, embora a religião proclame a sacralidade da família, o entendimento desta instituição não pode se limitar mais o aos desígnios religiosos, precisando ser entendida em uma extensão mais ampla: a esfera social.

 Pessoas de fé alegam que redefinir família é um absurdo, já que o casamento, principal pilar da estrutura familiar, trata-se de uma prática essencialmente religiosa, que o Estado simplesmente resolveu reconhecer de modo oficial em algum momento do passado. De fato, a origem do casamento está ligada a religião, porém é, no mínimo, ingênuo afirmar que o Estado promove o casamento para celebrá-lo enquanto prática sagrada. Há outros interesses por trás disso. O que acontece é uma adaptação do rito religioso para a dimensão civil, tendo em vista a série de benefícios que a união proporciona. Uma vez que o Estado adota o casamento, este deixa de ser uma exclusividade religiosa cuja natureza e desígnios dependem de fé. O casamento, a partir de então, passa a assumir um caráter paralelo, inserido no contexto de uma instituição secular - o Estado democrático- que visa a construção de relações estáveis de confiança e cooperação mútua entre os cidadãos, podendo ou não, dessas relações, resultar filhos. Talvez valha a pena discutir a razão do Estado preconizar tais interesses, mas é inegável que a distinção entre a função do casamento do ponto de vista religioso e do ponto de vista estatal é a grande fonte de controvérsia em temas como o casamento gey.

 O não reconhecimento civil entre casais do mesmo sexo começa pelo fato de que a própria religião não admite perder a exclusividade sobre a instituição do matrimônio. Aproveitando-se de sua influência decisiva nas questões públicas, ela faz prevalecer seus dogmas sobre toda a sociedade. Afinal, se a religião não aceita perder o monopólio sobre a definição dos moldes em que deve se enquadrar o casamento, muito menos seus seguidores no Congresso deixarão que isso aconteça.

 Sendo assim, o Estado brasileiro não vê nem de longe a sua laicidade ser exercida em plenitude. Haveria outro motivo, se não religioso, por trás da negação de um direito civil aos homossexuais? A resistência em contrariar publicamente os dogmas é, sim, reflexo de uma população predominantemente religiosa. Porém, mais do que isso, é reflexo de uma população religiosa com pensamento particularmente intolerante e que tem dificuldade de por em prática o conceito de alteridade. Mais do que partilhar de preceitos religiosos, muitas pessoas apenas se limitam a estes. Elas desconhecem ou negligenciam percepções alternativas de mundo, a tal ponto que não conseguem aceitar ou reconhecer as diferenças. É o que se percebe na discussão acerca do casamento gay. Os religiosos que se opõem a esta mudança, em muitos casos, nitidamente não se colocam a enxergar a questão por um prisma diferente daquele definido pelas suas religiões. Sequer dão-se a esse trabalho. Preferem fechar-se em seus casulos e julgar o mundo a partir dos clarões que atravessam a seda da qual seus casulos é composta. Com efeito, uma versão piorada da caverna de Platão.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Violência: uma endemia multifacetada

A violência nas escolas brasileiras é um fenômeno que reflete a mentalidade genérica dos brasileiros no que tange a solução de conflitos. Essa cultura é frequentemente retratada pela mídia, porém a consciência pouco apurada da população ocasiona que tais retratos intensifiquem o comportamento agressivo dos jovens. A escola, por sua vez, negligencia os episódios de agressão e ameaça, na medida em que não responde pela devida transmissão do valor do diálogo como ferramenta social. Dessa forma, prevalecem os ensinamentos e conselhos violentos das famílias brasileiras, que acabam por perpetuar um paradigma vergonhoso.
A mídia brasileira reiteradamente aborda a questão da violência. Filmes como "Tropa de Elite" e "Cidade de Deus" são exemplos marcantes disso. O problema é que os jovens consomem maciçamente esse tipo de produção, à despeito de classificações indicativas, e acabam incorporando o conteúdo violento nas suas vidas. Eles reproduzem comportamentos bárbaros em seus círculos sociais, principalmente na escola. Personagens como Capitão Nascimento se tronam heróis e a decadência moral de "Zé Pequeno" vira motivo de brincadeira.
É evidente que a violência não é exclusividade nem cria das escolas. Ela ocorre nesse meio como projeção da sociedade exterior, cuja mentalidade violenta encontra na escola um ambiente favorável para sua concretização. Afinal, as escolas brasileiras seguem modelos arcaicos de ensino, sem a incorporação de tecnologias e da linguagem típica dos alunos. Isso gera um distanciamento entre os agentes educadores e os jovens que, sentido-se relegados a própria sorte, dividem-se em grupos e brigam pela soberania. A coordenação educativa, impotente, não se vê em vias de ensinar esses jovens a substituir as ameaças e a intimidação pelo diálogo e pela negociação.
Esse ensino também é carente por parte  das famílias do país. Em vez de repreender atos violentos, muitos pais o encorajam através de conselhos espúrios que recomendam aos filhos responderem agressivamente a provocações. Ademais, comportamentos violentos partem dos próprios familiares quando cultivam clima hostil em casa ou portam armas por razões questionáveis.
Portanto, é preciso que a juventude brasileira receba uma formação pacífica que aplaque a tendência a cometer atos agressivos em escolas. A mídia deve aproveitar as circunstâncias em que aborda o tema da violência para introduzir orientações sobre a necessidade de evitá-la. As escolas, por sua vez, devem adotar propostas pedagógicas mais modernas que ponham os jovens próximos da coordenação educativa, permitindo, assim, a construção gradual da cultura do diálogo, a qual deve contar com o apoio das famílias, cujo papel consiste em transmitir valores pacíficos e menos hostis.

Violência não é a melhor resposta

O sistema judiciário brasileiro sofre de graves deficiências. A burocracia e a corrupção são fatores que dificultam a realização de julgamentos rápidos e satisfatórios. Como resultado de tamanha omissão por parte da justiça, alguns cidadãos se consideram no direito de exercer o papel do Estado por conta própria. Isso, contudo, apenas agrava o cenário já problemático, criando uma cultura de violência na sociedade. Sem as devidas providências sendo tomadas, a mentalidade da população tende a retroceder e os direitos humanos tendem a ser desrespeitados.
A violência é um problema endêmico que acomete a sociedade e a cultura brasileira. Em grande parte, isso se deve à educação essencialmente inadequada que é oferecida aos jovens, bem como à incompetência do sistema penal que, graças a a sua morosidade e extensa burocracia, acaba por privilegiar inúmeros bandidos com a impunidade. É justamente a combinação desses dois elementos que explica os índices de violência tão alarmantes com que o povo brasileiros se depara nos noticiários e testemunha nas ruas.
Uma vez que a justiça se mostra deveras incompetente na função de punir os bandidos, muitos consideram que a própria população está justificada em dar uma resposta aos crimes cometidos, valendo-se dos recursos que estão ao seu alcance para isso. Essa reação, diz-se, é a única alternativa para se combater a impunidade deixada pela omissão do Estado.
Há, contudo, um revés extremamente problemático da justiça realizada com "as próprias mãos". Na maior parcela dos casos ela se baseia em emoções descontroladas e acaba legitimando a vingança como forma adequada de punição. A presunção de inocência não é devidamente levada em conta, o que faz com que muitos sejam linchados ou energicamente castigados sem que tenham cometido crime algum. A ausência de mecanismos criteriosos para o julgamento ocasiona punições desproporcionais e reagir à violência com mais violência faz com que ela se torne trivial e passe a fazer parte da cultura do país.
Portanto, dado o exposto, é necessário que o poder público ofereça à sua população um ensino humanista e rico em valores desde a infância, com o fim de evitar a formação de novos criminosos e o surgimento de uma cultura de violência. Ademais, é preciso que se dê celeridade aos julgamentos judiciais, inibindo o excesso de burocracia e favorecendo a aplicação de penas proporcionais que tenham caráter exemplar.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Mente fraca, Impacto Forte (Redação ENEM - 2014)

O público infantil cada vez mais se constitui em um alvo da publicidade brasileira. Psicologicamente vulneráveis na formação de suas opiniões, os pequeninos são vistos por muitos fabricantes como fonte garantida de consumo. Contudo, a exploração da mente influenciável desse público é uma prática duvidosa, que transgride alguns preceitos éticos e põe em discussão os escrúpulos da mídia.
Cada vez menos os adultos brasileiros têm se atentado à importância de educar as crianças na tenra idade. Como consequência, poucas medidas são adotadas com o fim de evitar a manipulação ideológica do público infantil. Aproveitando-se dessa realidade, as empresas que anunciam produtos através da mídia passaram a ter um trato especial pelo público infantil, dirigindo a divulgação de seus produtos para o mesmo.
As vantagens que os fabricantes e anunciantes encontravam em tal medida atenderam de longe a seus interesses: não apenas o público infantil se convence facilmente da superioridade dos produtos que são expostos no anúncio, como ele também exerce uma fortíssima influência sobre as preferências de consumo de suas famílias. Dessa forma, tornar as crianças massa-de-manobra para auferir lucros empresariais se revelou um método eficiente para os negócios.
No entanto, é válido questionar se esse método é ético. Assentar-se sobre o intelecto frágil de um público que sequer tem formada a sua capacidade de discernimento evidencia um lado inescrupuloso do capitalismo brasileiro. De um lado, os fabricantes em busca de elevar seus lucros a todo custo, com a mídia intermediando seus interesses. De outro, uma sociedade desprecavida, que não envida os devidos esforços à instrução de suas crianças ou ao desenvolvimento do senso crítico das mesmas.
Em vista de uma solução a esse problema, é preciso que os pais estabeleçam um diálogo franco com seus filhos pequenos, instruindo e conscientizando os mesmos sobre o objetivo da publicidade. Ademais, é preciso que se elaborem políticas públicas voltadas à regulação dos anúncios publicitários, para que não se permita abusar da mente vulnerável das crianças e de sua inocência. Por fim, essa temática precisa ser abordada abertamente na sociedade, com a mídia estimulando o debate.

Nota: 960.0